A resiliência parece ser um tópico de muita discussão nos círculos do urbanismo hoje em dia. No entanto, há um pequeno problema: não podemos chegar a um acordo sobre o significado de resiliência.
Duas definições parecem existir. A primeira, enraizada na ciência dos materiais. A segunda, na ecologia.
Pense em um objeto. Um objeto que possui uma certa forma e resistência. Então, uma pressão é aplicada sobre ele. O objeto recebe e reage a essa pressão, retornando à sua forma e força originais. Do contexto da ciência material, esse objeto se comportou de maneira resistente.
Agora, vamos pensar em uma floresta. Uma floresta com uma ampla variedade de espécies, da escala de micróbios ao dossel tropical. A pressão é aplicada, por exemplo, uma seca. Certas espécies morrem. Outras são frutíferas e se multiplicam. No final, a floresta mantém uma diversidade suficientemente ampla de espécies, em uma variedade de escalas, de modo que, isso se torna uma boa oportunidade para sobreviver de maneira semelhante a uma futura situação de pressão. Do contexto da ecologia, essa floresta se comportou de maneira resiliente.
Entre essas definições, há três diferenças principais a serem consideradas: (1) o tema da autoria; (2) como se responde à pressões e (3) o que acontece depois que a pressão cessa.
A forma e a força do objeto são conscientemente projetadas ou designadas por alguém, sob uma lógica de cima para baixo. Com a floresta, esse não é o caso: tem uma fisicalidade, uma geologia, uma geografia. Essa fisicalidade fornece os nichos que sustentam a subsistência de uma grande variedade de espécies, grandes ou pequenas. A autoria da natureza da floresta é escrita de maneira ascendente, ou seja, uma lógica de baixo para cima. Além de sua complexidade, a floresta também mantém um pouco de aleatoriedade e imprevisibilidade em seu comportamento: as espécies sofrem mutações; geografias mudam; os comportamentos são alterados e assim por diante, além das capacidades dos modelos preditivos.
Essa diversidade e aleatoriedade simultâneas moldam como a floresta responde à pressão. Sua capacidade de responder às mudanças evolui com o tempo. Enquanto um objeto físico, por outro lado, pode ser complexo, mas sua capacidade de responder à pressão é sempre limitada às fronteiras inicialmente formadas por seus criadores.
O objeto de hoje, então, deve ser o mesmo que o objeto do passado. A floresta de hoje, por outro lado, não suporta essa carga. A floresta resultante dessa pressão (pós-pressão) pode ser radicalmente diferente de seu estado antes de sofrer a pressão (pré-pressão), desde que resolvido o problema da diversidade de espécies em todas as escalas.
O estado pós-pressão
No caso das cidades, o dilema é que ambas as definições de resiliência estão em movimento.
Considere o caso de Nova York. A pressão: uma tempestade, semelhante ao furacão Sandy (2012). Quando esta força é aplicada ao tecido urbano, o que acontece? Porções significativas da cidade são inundadas. A infraestrutura rodoviária e o transporte público são paralisados. Ocorrem falhas de energia em larga escala. As instituições estão sobrecarregadas. O tecido físico da cidade está seriamente danificado. Muitas pessoas perdem suas vidas.
A definição de resiliência da ciência material está em jogo aqui. Espera-se que a cidade recupere seu estado pré-tempestade quando as águas baixarem. A forma e a força da cidade pré-tempestade são esperadas exatamente da mesma forma na cidade pós-tempestade, especificamente em termos de seus sistemas públicos que foram criados, projetados e configurados verticalmente (de cima para baixo) por instituições urbanas estatais. Se a cidade pós-tempestade não conseguir atingir seu estado pré-tempestade como esperado, presumimos que a tempestade estava além das capacidades da cidade.
Consideremos outra força: uma crise socioeconômica semelhante à gama de pressões que ajudaram a moldar Nova York na década de 1970, que estava à beira da falência, e as grandes migrações e deslocamentos urbanos observados durante esses anos. Quando tal pressão atinge o tecido urbano, algumas partes da rede socioeconômica colapsam, decaem e desaparecem. Outras encontram oportunidade, ganham força e se multiplicam.
Após uma crise socioeconômica deste gênero, o estado de recuperação da cidade (pós-crise) não é necessariamente o mesmo que seu estado antes da crise (pré-crise). Se é uma cidade resiliente, ela é simplesmente reestruturada de forma a manter certa robustez da diversidade socioeconômica. A cidade pós-crise pode se assemelhar à cidade pré-crise, mas não precisa ocorrer como tal. O que torna as coisas mais interessantes é que essas pressões também ocorrem em escalas menores, o que afeta várias áreas do tecido urbano, enquanto outros nichos podem ser alheios à sua presença.
O fardo da visão histórica
A cidade é tanto o objeto físico quanto a floresta. No entanto, quando falamos em resiliência urbana, muitas vezes esquecemos a selva e nos concentramos no objeto físico do primeiro exemplo.
Isso é parcialmente um fardo histórico: os marcos do final do século XIX e do início do século XX ainda pesam sobre os fundamentos do urbanismo como o entendemos hoje: da genética às normas de gênero; da imigração para estruturas econômicas e hábitos domésticos. Esta foi uma época em que a elite de especialistas assumiu que estava dentro de sua competência controlar e moldar a cidade em torno de uma visão estabelecida do que uma cidade aceitável deveria ser. Aceitável até um momento altamente interessado em colônias industriais, famílias, grandes empreendimentos suburbanos e visões utópicas. Por exemplo, megaprojetos que se assemelham à cidades, mas que essencialmente se comportam como objetos arquitetônicos em grande escala, criados e controlados posteriormente de maneira descendente.
O desafio apresentado pela resistência urbana aos planejadores urbanos contemporâneos é o equilíbrio intelectual que deve capturar simultaneamente o objeto físico e a floresta. No campo da infra-estrutura -redes institucionais, sistemas de energia e resíduos e emissões de carbono, para citar alguns -, devemos assumir a definição científica de resiliência. Na área socioeconômica, política e cultural, devemos assumir a definição ecológica de resiliência.
No caso do objeto físico, a visão da cidade é mantida, refinada, aprimorada. No caso da floresta, a visão da cidade deve ser abandonada. Pelo contrário, o direito à cidade, á viver, à trabalhar e à ter acesso equitativo a oportunidades urbanas são fatores que devem ser mantidos ao longo de todas as pressões que a cidade enfrenta. Mas, invariavelmente, devemos renunciar à nossa autoria sobre o tipo de cidade, a visão da cidade, que é formada dentro dessa estrutura. A cidade deve se moldar por si própria.
Se não conferimos à cidade essa capacidade de tal autodeterminação, eliminamos a natureza aleatória, imprevisível e inovadora do tecido urbano. Temos, então, não uma entidade urbana, mas um objeto que simplesmente se assemelha a uma. Não com uma floresta, mas uma paisagem bem cuidada feita para parecer uma.
Nota do Editor: Este artigo foi publicado originalmente em 09 de julho de 2019 e atualizado em 30 de outubro de 2020.